quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Ler faz bem ou faz mal ?



“Minha vida tinha tomado o caminho errado, e meu contato com os homens não era mais do que um monólogo interior. Havia descido tão baixo que, se tivesse que escolher entre ficar apaixonado por uma mulher e ler um bom livro, eu preferia o livro”. (Nikos KASANTZAKIS, 1978: 97)

 “Há portanto, na biblioteca mesmo, livros que contêm mentiras...” (Umberto ECO, 2003: 45)

“Esses monges talvez leiam demais, e quando estão excitados revivem as visões que tiveram nos livros”. (Id., 117)

“Até então pensara que todo livro falasse das coisas, humanas ou divinas, que estão fora dos livros. Percebia agora que não raro os livros falam dos livros, ou seja, é como se falassem entre si”. (id., 277)

“Eu amo (...) a humanidade, mas admiro-me de mim mesmo. Tanto mais amo a humanidade em geral, quanto menos amo as pessoas em particular, como indivíduos”. (DOSTOIÉVSKI, 1970: 48)

“Chegamos a tal ponto que a “vida viva” autêntica é considerada por nós quase um trabalho, um emprego, e todos concordamos no íntimo que seguir os livros é melhor”. (DOSTOIÉVSKI, 1992: 185)




Caro (a) leitor (a), para evitar qualquer mal-entendido, confesso, de livre e espontânea vontade, que sou apaixonado pelos livros, especialmente pela literatura. Sou daqueles que preferem manusear os livros diretamente nas estantes da biblioteca à consulta tranqüila e bem-acomodada diante do monitor do computador. Sou daqueles que se deliciam em passar horas a visitar as livrarias e folhear os livros; do tipo que passa horas em sebos, procurando raridades e autores preferidos. Dessas visitas aos antigos e sebosos, fico com os olhos lacrimejantes e vermelhos, o corpo cansado e impregnado de pó. O esforço é imenso. Mas, suprema alegria!, descubro um livro que vale a pena ler! Como é grato e nos enche de contentamento descobrir, em meio aos milhares de exemplares, um livro que nos chama a atenção, que nos convida à leitura ou simplesmente contribui para o nosso engrandecimento intelectual.

Sou apaixonado pela palavra e me deleito com a beleza e criatividade manifesta na construção de uma frase e de uma descrição bem elaborada. Forma e conteúdo amalgamam-se e nos remete para além do nosso ser. Às vezes, no ato da leitura, detenho-me com admiração diante das palavras esculpidas no papel. Sim, trata-se mesmo de uma obra de arte! São palavras que marcam profundamente o ser, que nos fazem refletir sobre a beleza e a simplicidade do viver.

Mas não imagine o leitor que se trate de afetação ou apego ao rebuscamento da linguagem. Com efeito, o embaraço lingüístico é, em geral, um exercício de arrogância, de pose acadêmica, relacionado à necessidade do intelectual em querer firmar-se pelo status. É, usando um termo orwelliano, a soclíngua, um sociologismo que apenas atesta falta de ininteligibilidade. Como ensina Mills (1982: 235):

“Escrever é pretender a atenção dos leitores. (...) Escrever é também pretender para si um status pelo menos bastante para ser lido. O jovem acadêmico participa muito de ambas as pretensões, e porque sente que lhe falta uma posição pública, com freqüência coloca o status acima da atenção do leitor a quem se dirige. (...) O desejo do prestígio é uma das razões pelas quais os acadêmicos escorregam, com tanta facilidade para o ininteligível”.

Também o velho acadêmico, por arrogância ou falta de criatividade, procura impressionar pela erudição. É o discurso professoral em ação. Este parte do pressuposto que quanto mais incompreensível, mais inteligente parecerá. E, o pior, os consumidores deste falatório sem sentido, pretensamente erudito e filosófico, são seus cúmplices. É um discurso incompreensível que se derrama na ignorância do outro e que parecerá mais imponente na proporção em que reduz este à condição de asno ou papagaio. Isso sem falar na mixórdia panfletária...

Prefiro a literatura aos escritos sisudos, chatos e ininteligíveis dos teóricos metidos a filósofos, sociólogos e outros pertencentes à fauna das Ciências Humanas. Admiro, sobretudo, a capacidade dos que escrevem de maneira bela e inteligível sobre a complexidade da vida. Os que expressam as tragédias e alegrias humanas, com as quais, em qualquer época e lugar, nos identificamos. No fundo, mudam os tempos, os costumes e os governos, mas, em essência, permanecemos os mesmos. Daí a admiração em relação a estes autores que compreendem a alma humana. Seus personagens nos dizem respeito; é da vida que eles nos falam.

A literatura arrebata o espírito e nos permite um aprendizado prazeroso em todos os aspectos: histórico, político, social, cultural etc. Como não se enredar com os escritos clássicos? Seus personagens, contextos e descrições, nos fazem viajar no tempo: a imaginação vagueia saborosamente nos recônditos do ser humano e seus dilemas; em nossos devaneios, nos identificamos com os seus personagens, suas misérias e alegrias.

Como não se emocionar com o sofrimento de Anna Karênina (Tolstoi) e também com a sua coragem em enfrentar a hipócrita sociedade da sua época? Como passar incólume diante dos personagens de Dostoiévski, expressão dos dilemas humanos diante do mal e do bem? Como não se admirar ante a ambição desmedida de Luciano (Balzac) e Julien Sorel (Stendhal)? Como não se comover com o trágico desenlace da trajetória de ascensão e queda deste filho de camponês, que tão bem expressa as contradições sociais e os preconceitos elitistas contra os que vêm de baixo – ou mesmo o sentimento de desgarrado dos que ascendem socialmente, mas tem a consciência das suas raízes sociais? Como não sentir admiração ante a luta hercúlea de Gilliatt (Victor Hugo) contra a natureza impetuosa e o preconceito? Que dizer então do relato sobre a viagem de Dante Alighieri às profundezas do inferno? Não é admirável tamanha imaginação para descrever o indescritível? E qual mente fértil poderia nos remeter para o absurdo de Gregor Samsa, metamorfoseado num inseto monstruoso, ou o processo contra K., senão a de um escritor criativo como Franz Kafka? E, ainda, a simbiose entre política, religião, história e mistério, no envolvente O Nome da Rosa, de Umberto Eco? E Marguerite Duras, Milan Kundera e Vladimir Nabokov não são exemplares na arte de descrever as complexas relações homem-mulher em idades e situações tão díspares? E a capacidade dos nossos autores maiores em contextualizar a realidade socioeconômica do povo brasileiro e desvendar os liames que explicam o fosso abismal entre a opulência da elite e a miséria da populaça? É possível ler Machado de Assis e Lima Barreto, por exemplo, e não se indignar com a nossa elite, os políticos e o bacharelismo insolente?



Sou, portanto, insuspeito de não gostar dos livros, de não querê-los bem ou de desestimular os leitores. Contudo, como o personagem de Nikos Kazantzakis, não quero tornar-me um “camundongo comedor de papiros” e sucumbir à realidade dos livros. Receio que a vida, em toda a sua plenitude, com o belo e o horripilante, o bem e o mal, o agradável e o execrável, as pequenas alegrias e as enormes tristezas etc., se esvaeça e se restrinja ao mundo imaginário e fantasmagórico dos personagens e situações descritas nos livros:

“Eu que tanto amava a vida, como me havia deixado petrificar por tanto tempo numa confusão de livros e papéis enegrecidos! Nesse dia de separação, meu amigo ajudou-me a ver claro. Senti-me aliviado. Conhecendo agora minha desgraça, poderia talvez vencê-la com mais facilidade. Ela não era mais esparsa e incorpórea; tinha agora um nome, havia tomado corpo e ficou fácil para mim lutar contra ela”. (Kazantzakis, 1978: 06)

Nesta perspectiva, há a tentação de fugir da realidade e substituir o concreto pela abstração da linguagem, dos conceitos e noções. Este tipo de leitor prende-se ao mundo das idéias. Seu espírito é arrebatado à concretitude da vida. Com afirma Léon, em Madame Bovary:

“É que não se pensa em nada (...), e as horas passam. Sem se sair do lugar, passeia-se por países imaginários, e o pensamento, enlaçando-se com a ficção, demora-se em pormenores, segue o contorno das aventuras. A gente roça pelos personagens e até parece que se palpita sob os seus trajes”. (Flaubert, 2003: 102-103)

E então esquecemos de nós próprios e mergulhamos no mundo dos livros. Quando emergirmos ainda nos vemos atados à ficção. Sorte de quem percebe o risco do delírio causado pelo excesso de leituras ou tem um amigo que lhe adverte do mal que padece. Na pior das hipóteses, quando o leitor desgarrou-se da realidade mundana para viver no mundo dos livros, devemos procurar compreender sua insanidade e agirmos ao modo de Sancho Pança. Com efeito, os fissurados em livros revivem o personagem clássico criado por Miguel de Cervantes: Dom Quixote. Este, de tanto ler, enlouqueceu:

“Em suma, tanto naquelas leituras se enfrascou, que passava as noites de claro em claro e os dias de escuro em escuro, e assim, do pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo. Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no mundo”. (Cervantes, 1978: 30)

Se rirmos com as peripécias do Cavaleiro da Triste Figura, em seu mundo fantasioso e suas batalhas contra os moinhos de ventos e criaturas que só existem em sua cabeça, nos irritamos e tendemos a nos afastar dos que agem como o Dom Quixote. O personagem da vida real, o Dom Quixote contemporâneo, nos enlouquece de tanto falar sobre livros e teorias. Seus assuntos giram em torno de um mundo deslocado da realidade, e esta só se apresenta para ele através dos livros. Tal qual o fanático religioso, político ou futebolístico, ele tem dificuldade de se relacionar com indivíduos que não comunguem da sua compulsão, que, em sua visão, não se encontrem preparados para conversar sobre os temas que ele considera importantes. No limite, ele chega a desprezar os que não lêem livros, ou os seus livros, e não os considera inteligentes o suficiente para entabular um diálogo proveitoso. Seu mundo restringe-se aos livros e aos que compartilham da sua mania de conversar sobre os livros. Ele não percebe o quanto é vítima da bolha protetora que construiu ao seu redor. E se os outros se afastam por não suportarem a sua chatice, os seus “papos cabeça”, ele se fecha ainda mais em seu círculo imaginário. Para ele, os outros são alienados que só sabem falar sobre a pequenez da vida humana. Em seu delírio, os homens e mulheres, mortais e simples, não merecem a sua palavra. Não porque ele, necessariamente, tenha preconceitos, mas sim porque, do alto da sua inteligência, ancorada nas leituras, lhe parece que o outro nunca o compreenderá e, portanto, não vale a pena gastar o seu precioso tempo com este.

O leitor obsessivo sacraliza os livros, transforma-os em seu código de conduta, seu assunto permanente, faz desta relação uma espécie de culto ao erudito. Mesmo quando parece dialogar sobre as coisas mundanas, na verdade ele estabelece um monólogo cujo referencial não é o outro, mas as suas leituras. Ao seu interlocutor resta aceitar seu dissertar ou correr o risco de confrontá-lo com o silêncio ou a objeção. Esta, desde que inserida nos termos do discurso livresco, pode ser aceita. Mas não se tente, em hipótese alguma, arrancá-lo dos seus devaneios, das suas abstrações conceituais, que lhe parecem tão importantes...

Muitos dos que amam excessivamente os livros sofrem muito se os separam deles – quem sabe até mais do que se os afastam dos amigos ou familiares. Em seu êxtase, os livros se tornam o mais importante, o essencial, e as relações humanas reais seus apêndices:

“Deixa-nos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar. Para nós, é pesado, até, ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios; temos vergonha disso, consideramos tal fato um opróbrio e procuramos ser homens gerais que nunca existiram. Somos natimortos, já que não nascemos de pais vivos, e isto nos agrada cada vez mais. Em breve, inventaremos algum modo de nascer de uma idéia”.(DOSTOIÉVSKI, 1992: 185-186)

O homem do livro, tal qual o Cavaleiro Andante, vive as aventuras imaginárias e é nestas que busca argumentos para se contrapor ao real; suas batalhas são fictícias. A vida real lhe aparece enquanto uma teoria a ser desvendada, um argumento a ser abstratamente construído e expresso em palavras. Sua loucura é racionalizada, pois que se fundamenta na realidade dos livros. Porém, ao contrário do personagem de Cervantes, seu mundo se restringe ao seu escritório e à sua relação amorosa com os livros. Dom Quixote abandonou a casa e os livros e foi viver a sua fantasia em andanças pelo mundo real. Em suas aventuras, ele se mostra mais virtuoso do que o melhor leitor isolado em sua torre de marfim. A este é fácil o combate, pois lhe parece que do seu escritório, à frente dos seus livros e do teclado do computador, ele derrotará todos os que ousam se insurgir contra as suas verdades. Eis uma enorme diferença: ainda que louco Dom Quixote correu riscos reais para defender a sua loucura. Simbolicamente, ele expressa a luta dos que combatem, sob o risco da própria vida, os moinhos de ventos, isto é, realidades que estão diante dos nossos olhos e poucos conseguem enxergá-las. O Dom Quixote contemporâneo é um chato, comprometido apenas com idéias abstratas, quando muito efetivadas em debates inférteis e insuportáveis, sem qualquer vínculo com a realidade mundana.

O Dom Quixote moderno adora dançar o “balé dos conceitos”.[1] Seu gozo consiste em falar, falar e falar... Ele se realiza em conversas literárias. Ele acredita que a obra literária é incondicionada, “que existe em si e por si, agindo sobre nós graças a uma força própria que dispensa explicações”. Elitista em sua formação e estrutura de pensamento, ele imagina que o escritor clássico é uma espécie de gênio da humanidade, cuja originalidade decorre de uma “virtude criadora” e “misteriosamente pessoal”. (Candido, 2000: 67) Ele romantiza a literatura, desvincula-a do contexto histórico, das condições que influenciam mutuamente escritor e leitor. No fundo, ele se imagina um gênio em potencial.

Ler é essencial, prazeroso e nos faz bem. Porém, pode fazer muito mal. Depende da nossa capacidade de interagir com a realidade que nos cerca, de não nos deixarmos cair na tentação elitista e desconsiderar o mundo e a cultura não erudita. Afinal, por mais que nos envolvamos com a literatura, o real é mais cruel do que as crueldades encontradas nos livros; e a miséria humana não se restringe às palavras e conceitos. Triste do leitor que se deixa extasiar a ponto de, como Dom Quixote, se transplantar para um mundo abstrato e imaginário. Triste de quem prefere lidar com as palavras a lidar com os homens e mulheres que pronunciam as palavras – ainda que estas não sejam agradáveis aos seus ouvidos. Afinal, como diria o filósofo Zorba, de que nos serve todos os livros se permanecemos sem respostas para os dilemas mais simples que dizem respeito à vida e à morte?


[1] Isto se traduz na atitude do intelectual especialista e descomprometido com a realidade social e política que o cerca. Como assinalamos em “Os intelectuais diante do mundo: engajamento e responsabilidade”, este típico intelectual tende a separar a palavra do mundo, o conceito da realidade. Nele, as palavras dissociam-se da vida real, das contradições, sofrimentos e esperanças dos que vivem o mundo. Como afirma Paulo Freire: “Em última análise, tornamo-nos excelentes especialistas, num jogo intelectual muito interessante – o jogo dos conceitos! É um “balé de conceitos”. (Freire e Schor, 1986: 131)

*Crédito à Revista Espaço Acadêmico,35.

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