quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Uma História da Leitura

Capa da versão francesa do livro.

Um dia desses fui à livraria FNAC, queria comprar a metafísica de Aristóteles em português, mas infelizmente eu não encontrei, bem, na verdade eu encontrei, mas acabei comprando uma versão em espanhol, de Madrid. Andando pela parte de literatura estrangeira, logo vi um pequeno livro que me chamou atenção, o título em francês, “ Une Histoire de la lecture”, logo ao abrir, nas primeiras páginas, foi uma grande viagem, o autor Alberto Manguel fala sobre o prazer de uma boa leitura, e de estar na companhia de livros, o que é certamente uma das coisas que eu mais adoro. Ele também fala sobre os grandes clássicos da humanidade. Em suma, os amantes da leitura, não podem perder essa leitura fascinante.
Eis aqui uma entrevista que Alberto Manguel concedeu à famigerada Veja ( que eu detesto, mas a entrevista é muito legal)

O ensaísta argentino, naturalizado canadense, autor de "Uma História da Leitura", explica por que a palavra escrita é a grande ferramenta para entender o mundo.

O autor argentino, naturalizado canadense Alberto Manguel.
Quando tinha 16 anos, o jovem argentino Alberto Manguel trabalhava numa livraria em Buenos Aires. Certo dia, viu entrar pela porta, acompanhado de sua mãe, um homem cego, já de meia-idade, que havia encomendado uma obra esquisita – um dicionário de anglo-saxão. Todo mundo conhecia o homem: era Jorge Luis Borges, um dos mais importantes escritores do continente latino-americano e, para muitos, um dos mais importantes do século.

 Manguel atendeu o escritor. E este, quando já estava para ir embora, resolveu fazer-lhe uma proposta: que tal se nas horas livres o rapaz fosse até sua casa, para ajudá-lo com os textos que ele não podia mais enxergar? Nos dois anos seguintes, foi exatamente o que aconteceu. Ele leu em voz alta para Borges. Para si mesmo, enquanto isso, confirmou sua paixão pela leitura. Hoje, aos 55 anos, ele é um especialista de renome internacional nesse tema.

Sua obra mais conhecida é Uma História da Leitura, que, lançada pela editora Companhia das Letras, chegou a freqüentar as listas de mais vendidos no Brasil. Com justiça. Escrito em linguagem clara e atraente, repleto de histórias e curiosidades, o ensaio aborda o assunto das mais diversas perspectivas – da iniciação à literatura à relação do texto escrito com as imagens e as novas tecnologias.

Filho de diplomata, Manguel – que se lembra de ter decifrado o significado das letras de um cartaz pela primeira vez aos 4 anos – já viveu em diversos países, da Itália ao Taiti, e é fluente em cinco línguas. Atualmente, é cidadão do Canadá, "um país onde sua voz é escutada sem que você precise ser um político". Vivendo em Calgary, participa neste ano de um programa para escritores na universidade local e escreve Uma História do Amor e do Ódio, a ser lançado até dezembro. Foi lá que Manguel deu a VEJA a seguinte entrevista:

Veja – Numa época em que predominam as imagens, por que a leitura ainda é importante?

Manguel – A atual cultura de imagens é superficialíssima, ao contrário do que acontecia na Idade Média e na Renascença, épocas também marcadas por uma forte imagética. Pense, por exemplo, nas imagens veiculadas pela publicidade. Elas captam a nossa atenção por apenas poucos segundos, sem nos dar chance para pensar. Essa é a tendência geral em todos os meios visivos. Assim, a palavra escrita é, mais do que nunca, a nossa principal ferramenta para compreender o mundo. A grandeza do texto consiste em nos dar a possibilidade de refletir e interpretar. Prova disso é que as pessoas estão lendo cada vez mais, assim como mais livros estão sendo publicados a cada ano. Bill Gates, presidente da Microsoft, propõe uma sociedade sem papel. Mas, para desenvolver essa idéia, ele publicou um livro. Isso diz alguma coisa.

Veja – Que diferenças existem entre ler um livro e ler a mesma obra numa tela de computador?

Manguel – Os livros de hoje derivam dos pergaminhos e estes, das tábuas. Ou seja, são resultado de um processo que visou facilitar a vida do leitor. O formato atual do livro permite carregá-lo para qualquer lugar, folheá-lo sem esforço e anotar em suas margens. Também possibilita que saibamos exatamente seu tamanho, o que era difícil no caso do pergaminho. As palavras impressas no papel são tangíveis, você quase pode tocar a tinta, e têm uma durabilidade incrível. No museu de arqueologia de Nápoles, vi papiros queimados na erupção do Vesúvio que destruiu Pompéia. Ainda é possível ler o que está escrito nesses fragmentos. Já se um disquete cair na água o texto nele contido desaparecerá para sempre. No computador, o texto não tem uma realidade sólida, além de ser extremamente frágil – se você apertar um comando errado, adeus texto. Quando falamos em ler um livro, nosso vocabulário é gastronômico: "Devoramos um livro" ou "Saboreamos um texto". Já em relação ao computador usamos palavras que têm a ver com superfície, como "surfar na internet" ou "escanear um texto". É impossível interiorizar o texto que aparece na tela luminosa. Isso me faz pensar que não lidamos com a informática de maneira correta. Veja o caso do CD-ROM. Insistimos em utilizá-lo como artifício para enriquecer a edição de uma obra, quando o melhor recipiente para um texto é o livro convencional. A história mostra que esse tipo de problema ocorre sempre que adotamos uma nova tecnologia. No final do século passado, dizia-se que, com o nascimento da fotografia, a pintura morreria. Da mesma forma, acredita-se hoje que a mídia eletrônica substituirá a imprensa. Bobagem. Assim como a fotografia encontrou uma linguagem própria, a informática também achará a sua.

Veja – O senhor usa a internet?

Manguel – Não muito. O processo de pesquisa na internet não me leva rapidamente ao tipo de informação que busco. Estou bem mais acostumado a pesquisar em bibliotecas.

Veja – O filme Mensagem para Você mostra que as megalivrarias americanas, como a Barnes & Noble, estão abocanhando as pequenas. O que o senhor acha dessa tendência?

Manguel – Odeio a Barnes & Noble, mas não há muito o que fazer a respeito. A noção de livraria como um supermercado onde os vendedores não sabem o que estão vendendo é uma idéia infeliz, movida por razões econômicas. Para o leitor, a única vantagem é o grande número de títulos disponíveis. Houve uma perda qualitativa com o advento das megalojas, porque um freqüentador de livraria não ia a um estabelecimento apenas para comprar um livro. Ia também para conversar sobre literatura, receber recomendações de obras, ter uma seleção mais pessoal. As livrarias tinham uma identidade, ao contrário da Barnes & Noble. O mesmo raciocínio vale para uma livraria virtual, como a Amazon.

Manguel, em sua biblioteca

Veja – É melhor ler publicações sem qualidade do que não ler nada?

Manguel – Essa pergunta pressupõe que certos livros são necessariamente melhores do que outros. Não acredito em hierarquias absolutas no campo da leitura. Nos países árabes, que valorizavam a filosofia e a poesia em detrimento da ficção, As Mil e Uma Noites eram vistas como literatura barata. No Ocidente, porém, o livro tornou-se um clássico. A dimensão de uma obra depende também da experiência pessoal de cada um, de quanto sua vida foi transformada por ela. É um tanto arrogante dizer "esse é o livro que você deve ler e esse é o que você não deve". Há obras certas para diferentes momentos de sua existência.

Veja – Que autores tiveram grande influência sobre o senhor?

Manguel – Um nome que me ocorre é o do brasileiro Monteiro Lobato, autor do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Ter lido Monteiro Lobato numa certa fase de minha vida foi mais enriquecedor do que ter lido Camões, há cinco anos. Camões é interessante, levou-me a pensar em questões profundas, mas não mudou minha vida. Tive contato com as obras de Lobato aos 8 anos, logo depois de mudar para a Argentina. Eu relacionava alguns episódios protagonizados pela boneca Emília com certas dificuldades que tive na escola nova, por causa do idioma que eu não falava.

Veja – O senhor conhece Machado de Assis?

Manguel – Gosto muito do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Machado de Assis é um dos escritores fundamentais de nosso tempo. O fato de ele não ter exercido uma influência internacional deve-se exclusivamente a circunstâncias culturais e econômicas. Ele viveu no Brasil, um país remoto no século passado, apesar de seu tamanho. Se Machado de Assis tivesse escrito em inglês, ele teria sido um precursor, e não um herdeiro de determinadas concepções literárias.

Veja – O que se perde ao ler um livro traduzido?

Manguel – Tudo. Um livro é a língua na qual ele foi escrito. Sua tradução é outra obra – que às vezes pode até ser melhor do que a original. Quem sabe alemão, francês, italiano, espanhol e sueco tem a literatura do mundo inteiro a sua disposição. Se você fala apenas inglês, não. Os países de língua inglesa não traduzem muito. Têm uma cultura profundamente arrogante, que acredita que a civilização termina nos limites de seu próprio idioma.


O amigo Jorge Luís Borges, com quem compartilhou grandes leituras
Veja – Uma criança é capaz de entender obras clássicas, como as do inglês William Shakespeare?

Manguel – Não, Shakespeare escreve numa linguagem antiga. Uma criança pode entender algo desde que seus textos sejam vertidos para uma linguagem mais simples. Ainda assim, as crianças só compreenderão Shakespeare até certo ponto, dada sua parca experiência de vida e limitada formação intelectual.

Veja – As adaptações de clássicos para crianças são uma boa idéia?

Manguel – Não as acho necessárias. Por que uma criança deve ser obrigada a ler obras clássicas? Ela pode começar lendo livros próprios para sua idade e, depois de crescida, chegar a Shakespeare. Mais do que uma simplificação, a adaptação de uma obra implica uma intervenção inadmissível em seu conteúdo. No limite, ela pode tirar da pessoa o desejo de ler um clássico na versão integral. Não há por que tratar a leitura de grandes livros como obrigação. Não há prazer na obrigação e devemos ler apenas por prazer.

Veja – É correto forçar uma criança a ler?

Manguel – Da mesma maneira que não podemos fazer com que uma criança goste de alguém, não temos a capacidade de transformá-la num leitor. O que devemos fazer, como adultos responsáveis, é colocar a literatura à disposição da garotada. Uma das razões pelas quais às vezes não apreciamos um determinado livro é por termos sido forçados a lê-lo na escola ou por nossos pais terem lido e nos obrigado a fazer o mesmo. Parte da maravilha e da riqueza da leitura vem da liberdade que ela sugere e da possibilidade de vagar por florestas de prateleiras, escolhendo o livro certo para aquele momento, como se nós fôssemos seu primeiro leitor ou estivéssemos chegando a um país desconhecido. Essa é uma experiência que não devemos tirar de nossas crianças. Devemos deixá-las escolher, dizendo: "Você será uma pessoa melhor, mais feliz e mais sábia quando encontrar seu livro".

Veja – Quem lê muito necessariamente escreve bem?

Manguel – Muitos escritores preferem não ler enquanto estão escrevendo, para não influenciar seu trabalho. Mas só há uma forma de aprender a escrever bem: lendo. Lendo você pode descobrir como os escritores fizeram suas obras e ter noção do processo da escrita. Mas não há regras. O escritor inglês Somerset Maugham dizia que "existem três regras para escrever bem. Infelizmente ninguém sabe quais são elas".

Veja – A censura a livros é um instrumento válido para impedir que certas idéias perniciosas se disseminem?

Manguel – A história do livro sempre caminhou lado a lado com a censura, mas não canso de repetir: censurar é uma idiotice. Os livros banidos voltam de uma forma ou de outra, independentemente de seu conteúdo. Conheço um professor de filosofia que foi prisioneiro de um campo de concentração na Alemanha nazista. Por ter na mente muitos dos clássicos, ele servia de biblioteca viva para os outros prisioneiros. Sempre se procura desculpa para a censura. Hoje ela é a pornografia infantil. Mas a única maneira de evitar as eventuais influências negativas de um texto é por meio da educação, ensinando às pessoas como ler. Livros, por si sós, não incitam à violência ou propiciam o nascimento do anti-semitismo. O homem que matou John Lennon estava lendo O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger, uma das obras mais singelas e idealistas da literatura americana.

Veja – Qual é o país que detém o maior índice de leitura?

Manguel – Estatísticas mostram que é a Islândia. O curioso é que esse dado não vem de agora. No século passado, o francês Júlio Verne criou uma interessante passagem a respeito no romance Viagem ao Centro da Terra. Ao chegar à biblioteca de Reykjavik, capital daquele país, seus heróis encontraram as prateleiras quase vazias. Os livros estavam emprestados a ávidos leitores.

Veja – Por que o analfabetismo é crônico em tantas nações, apesar de ser um problema fácil e barato de ser resolvido?

Manguel – Porque ter acesso à palavra escrita significa a possibilidade de dominar um instrumento de poder chamado linguagem formal. É na linguagem formal que estão escritos os códigos, as leis de um país. Manter grande parte da população no analfabetismo é uma das maneiras utilizadas por governantes que querem perpetuar-se no poder, sem sofrer ameaças. Mas existe outro tipo de analfabetismo – aquele definido por São Jerônimo como a "ignorância desejada", que ele considerava um pecado.

Veja – O que é a "ignorância desejada"?

Manguel – É a atitude de quem, deliberadamente, não dá importância à cultura, mesmo tendo um grau satisfatório de escolaridade. Há um grande número de analfabetos desse tipo nos países desenvolvidos.

 
Veja – O senhor tem um lugar preferido para ler?

Manguel – Adoro ler nos trens, meu transporte predileto. Gosto também de ler na cama e leio no banheiro, claro. O lugar mais desconfortável é a mesa de trabalho.



 

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