terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Umberto Eco e o Nominalismo Medieval

A insana busca pela verdade é causa do obscurecimento da razão e da intolerância em qualquer época


“O Nome da Rosa” já vendeu mais de 4,5 milhões de exemplares em todo o mundo. Trata-se de um êxito editorial incontestável. No entanto, a princípio, muitos editores rejeitaram a publicação por se tratar de uma obra “difícil” para a maioria das pessoas, inclusive pela quantidade razoável de citações em latim. A verdade é que o best-seller de Umberto Eco é uma obra aberta que possibilita vários níveis de leitura: pode ser lido como um romance policial, um romance histórico, um bildungsroman ou até, para um leitor um pouco mais preparado, pode ser analisado como uma obra de reflexão filosófica.

Eco usa o ambiente medieval para expor, numa forma literária, um pouco do que foram os grandes debates sobre o conhecimento na Idade Média. Apesar da idéia tão propagada de que o medievo foi um período estéril para o Pensamento, Eco nos mostra que, mesmo com todo o dogmatismo religioso e com toda a intolerância, a história das idéias não sofreu um blackout de mil anos.
Um dado interessante é que O Nome da Rosa foi escrito logo após a divulgação de uma encíclica de João Paulo II que dizia: “A verdadeira paixão pela verdade é fundamento da tolerância mais profunda e autêntica liberdade”. O que Eco nos diz é exatamente o contrário: a “insana busca pela verdade” é causa do obscurecimento da razão e da intolerância em qualquer época.
Apesar de se tratar de uma obra literária, dificilmente se poderia expressar de maneira mais consistente o núcleo da corrente filosófica nominalista, que toma sua qualificação precisamente da proposta de que os conceitos universais não são mais do que nomes que usamos para designar meras coleções de indivíduos concretos. O próprio título, “O Nome da Rosa”, junto à citação latina “Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus”, que significa, dentro do contexto da obra, algo como: “A rosa originária consiste num simples nome, só ficamos com meros nomes”, pode ser visto como uma pista do autor sobre o conteúdo que fundamenta seu livro.

A desconfiança frente à linguagem é uma atitude intelectual que pode ser bem perigosa para certas mentes doutrinadas. A mentalidade medieval que proclamava que “o Verbo era Deus” se aproximava de uma crença quase animista nas palavras – pronunciar um nome era invocar materialmente o ser referido. Até hoje, de certa forma, permanece um pouco dessa crença impregnada na cultura: basta que alguém fale a palavra “câncer”, por exemplo, para que muita gente faça o sinal da cruz...

Nominalismo se opõe a Realismo enquanto doutrina que afirma a conexão entre a idéia e a realidade extramental. A oposição ao platonismo é frontal: os Universais não têm realidade nem nas coisas nem na mente divina, como exemplares eternos das coisas; são abstrações do espírito humano, conceitos ou termos arbitrários.
As teses nominalistas, que tiveram como principal representante Guilherme de Ockhan, eram consideradas heréticas pela Igreja por conduzir ao relativismo e ao ceticismo.

Ao designar os Universais como meros signos, Ockhan transpunha, como Abelardo, a questão da natureza dos Universais à de seu uso no conhecimento; esse uso, que constitui todo seu ser, consiste em substituir por designações as coisas mesmas. O Universal nasce no intelecto, somente de uma certa maneira de considerar a imagem sensível, sem levar em conta o que há nela de individual. A conseqüência de considerar as coisas singulares como única realidade existente é a indemonstrabilidade da existência de um ser necessário e universal; contudo, Ockhan, assim como Kant, não pôde negar Deus por questões de ordem moral.
O protagonista do relato, o franciscano Guilherme de Baskerville, assim como o autor, é semiólogo: “Nunca duvidei da verdade dos signos”. Guilherme, como nominalista, tem a convicção de que a abstração não é desmaterialização e universalização, mas um prescindir da existência das coisas. É aceitá-las como termos mentais que tem a capacidade de significar. Ele nunca está buscando uma verdade fixa e inabalável, pelo contrário: “Guilherme imaginava uma multiplicidade de respostas possíveis, muito distintas umas das outras; fiquei perplexo!”, admirava-se seu discípulo Adso de Melk, educado dentro dos princípios tomistas. Mas seu tutor insistia: “A beleza do cosmos não é dada somente pela unidade na variedade, mas também pela variedade na unidade”.
Para Ortega y Gasset, é uma ilusão achar que podemos nos apropriar de uma coisa quando nos apropriamos do seu nome. Nessa perspectiva, Ortega encara a vida e suas circunstâncias cambiantes como única realidade radical. A vida é independente de significação - os significados pertencem a um sistema. Nas palavras de Nietzsche: “Falar é uma bela loucura. Falando, baila o homem sobre todas as coisas”.
Fica claro no romance e em outras obras de Umberto Eco que ele se situa numa posição de defesa das idéias nominalistas. O Neonominalismo defendido por Eco só confere categoria ontológica, ou seja, só afirma a existência do presente, fluindo – o simples nomear já é tornar o objeto uma ficção.

Por certo, O Nome da Rosa tem muito a ver com o percurso intelectual do seu autor, católico progressista aos 20 anos, marxista aos 30 e, finalmente, pós-moderno depois dos 40. Após buscar tanto a Verdade em dogmatismos religiosos e filosóficos, resolveu seguir outra trilha: “O dever de quem ama os nomes é fazer rir da Verdade, porque a única verdade é aprender a nos liberar da paixão insana pela Verdade, e que, portanto, as únicas verdades que nos servem são instrumentos descartáveis”.
Neste conturbado começo de século, a lição de Eco parece que retoma sua atualidade: a insanidade de querer impor violentamente “verdades” políticas, religiosas e morais a outras pessoas e outras culturas permanece como mecanismo de dominação e obscurecimento da razão.





Um comentário:

  1. Esse texto é de minha autoria. Foi publicado na Revista Continente. Por favor, dê o crédito ou retire do blog.

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